sábado, 19 de setembro de 2009

Into the wild

Happiness only real when shared.

Alexander Supertramp

quinta-feira, 16 de julho de 2009

Dino

[a um bom camarada, livre como poucos, carioca de copo na mão, franco-maranhense de coração]

No vértice de um instante,
no ar,
na instância mais aguda
da palavra.

Camarada,
explodo contigo nessa manhã.

Entre a Rua Grande e
e o Quai Saint Germain,
por cheiros de livro,

num beco do Rio Comprido,
do Leme ao Lido.

Lida num grave humor,
a genealogia, a geografia do
indivíduo —
a origem te exerce um fascínio.

Saboreia o sabor
na história,
conversa com o vinho.

Decanta o teu amor
juif-sémite, gaulois,
azul como deve o mar,
oui.

Marginais em Montmartre,
no Moulin, aqui;

mas a vida é uma frase
composta de dois itinerantes,
de fé
e coração de viajantes.

E isso fica entre nós num café,
numa tarde,
num poema apagado.

Fico com a virulência no debate
e o instinto verbal que entorna
tua verve de vate.

O vácuo a meu lado vai ser uma forma
de fazer a saudade só mais
um aroma.

É nesse modo de ferver,
na via de enfrentamento
que a gente se encontra –
embora o meu sono.

Me acendo nesse vento,
calado, me aprendo em como
fazer de um momento
aquilo tudo o que somos:
ato.


Felipe Velho
Rio, 13 / 05 / 08

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Francisco

[a um companheiro de estrada mudando o caminho]

Vai ficando longe,
mas eu ainda
lembro: o passado,
sem orgulho mas doce,
amendoim Agtal e açúcar
União.
Lembro o fracasso
com as meninas e como a gente
pintava a rotina,
que era azul e cinza,
miúda
e ainda por cima
míngua na lembrança.

A gente vai passando
e contudo eu cato
alguma poeira
dentro da infância.

Lembro os jogos,
quase um conceito que te explica,
os dados de vinte lados
e os primeiros sons de uma promessa vazia:
sonho infantil requentado em furor adolescente,
a música feita pra menina,
uma melodia inocente,
a espera de uma chance
que não pôde, é claro.

É, tá ficando longe, meu caro,
e como você gosta de me ouvir:
tudo explodiu e a gente não viu,
não veio, nem voou,
e quem?
mas é engraçado,
a gente não sabia, a gente
não tinha nada
até o sono invadir o asfalto.


Ali sim fincou-se um tipo de fim,
com sabor de ferro, sim, rapidíssimo,
secamente como um raio.
Sem suspiro.
A manhã viria
à custa de soluços compartidos
e da certeza abissal de que
algo tinha mudado.
Depois tudo se abriria
numa distância rasa e
incontornável,
e agora tudo parece mais livre
embora os dias mais amargos,
a fumaça que vai engolindo
teu dia-a-dia na comida,
uma agoniazinha te fazendo levantar,
assobiar, se coçar, é, é...
flutua com cuidado nesse humor
leve, destila o riso na gota fina,
que eles se vão pela trilha treda,
rosnam tua mansa distração.

Só que as pernas da gente balançam
no muro, ainda,
amigo, é essa tua natureza fácil
que nos distingue e aproxima:
uma voz dócil que exclama
num recreio incontrolável, num modo lúdico
de viver o drama.


Felipe Velho
6 / 5 / 2008

quarta-feira, 15 de abril de 2009

Marlon Brando

[Diante de 'Um bonde chamado desejo']

Estávamos sós.

Você emergiu do fundo da casa como no dia em que chegou: olhar escancarado, histérico, breves fôlegos de coragem, vestindo os signos da ilusão. Minha presença a acendeu como febre, instantaneamente, você começou a dizer todas as mentiras que me transtornavam e excitavam. Calei-a endurecido, com minha moral de trabalhador, pujante e impenetrável. Daquele bonde para cá, perdíamo-nos a cada minuto.

Você permaneceu inerte por um longo tempo, imersa na própria delicadeza morta. Ao sair do silêncio, um sinal de descontrole se deixou revelar: o tom da sua voz saíra mais grave e rouco que de costume quando reagiu à minha censura violenta. Calei-a com fúria, latejante, úmido de uma sensação amarela e amarga.

Diante, então, da muralha suada que compus com a carnadura do meu tórax e a potência que vazava por nossas mãos, sem saída, você se emparedou em mim. Seus olhos foram sumindo gradualmente, pequenos, pequenos a cada metro que ganhavam rumo ao fundo do mundo, à verdade infinita. Não mais histérica, não mais vestida — apenas sua.

Já eu estava só.

Felipe Velho

[Texto de 2006]

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Dia de domingo

Interrompeu o passeio para um gole. O café esgotava toda a paisagem do bar. O jaleco, a caixa registradora e os copos não-enxaguados postos com grosseria sobre o balcão iam desaparecendo. Um gosto velho destilava entre os dentes. Um sabor rude que se apurava a cada grito dos ônibus no asfalto. De alguma forma, o funcionamento dos seus órgãos já estava condicionado a esse som vital. Triste processo, que se enroscava no clima morno do domingo. Daí a sentir a saudade do que não vivera. Conflito que Jorge, homem adulto de olhar bovino, jamais notaria.

Revezava o apoio das pernas cruzadas sob a cadeira — um pé suportando o outro. Já no terceiro movimento com o copo, juntou-se ao vapor quente do café e entrou na reminiscência daquele dia.
Por ter chegado pouco antes de os portões abrirem, Jorge circulou pelo entorno do estádio. Bandeiras e camisas, isopores embalados em fita parda, as árvores que margeiam o rio Maracanã, tudo dentro do cheiro forte de urina. Voltou aos portões, e lá encontrou Clóvis. Homem baixo, careca e levemente retardado (característica que, numa conversa, o fazia sempre concordar com o interlocutor). Mantinham uma amizade forjada na firmeza da simplicidade suburbana.

Após um abraço sincero e automático, puseram os pés em passo. Já sentado, Jorge, ao alcançar a primeira lata de cerveja, franziu o cenho:

— Ô Clóvis, onde é que tá o Marquinho, hein? Vou passar um rádio pra ele — relinchou, deixando surgir dentes branquíssimos, que se abriam como pássaros. Marquinho era outro amigo que havia marcado com eles. Juntos, os três formavam um pequeno núcleo, com absolutamente tudo girando em torno da cerveja, motor daquilo tudo:

— Fala, filho... Onde é que tu tá? — em seguida, uma troca de termos retóricos, num esforço mútuo para lubrificar a conversa, que, na verdade, não existia. Marcos era o mais jovem, o mais volúvel, e não iria ao jogo.

Clóvis sorria maquinalmente, ingênuo de óculos profundos. Jorge acendeu um cigarro. E completando um roteiro, olhou para o horizonte. Pôs um dos antebraços por debaixo do suvaco, coçou o bigode amarelado de alcatrão com um dos dedos da mão que segurava o cigarro e soltou:

— É engraçado, né, Clóvis, esse negócio de... — o discurso é interrompido pela voz do locutor do estádio, anunciando a entrada de um time. Naturalmente, Jorge obedeceu: calou e sumiu diante da expectativa que se criava.

Até o jogo começar, os minutos úmidos da espera. Como uma lacuna. E logo chegou um vento frio no ventre do pequeno Jorge, soprado pelo som do apito do juiz. Nesses dias de jogo, ele entrava num frenesi constante, aniquilando qualquer esboço de gravidade, embriagado de alegria infantil — processo que, de modo algum, percebia.

Mas o caos, visto de cima, tinha enredo, normas. Em solavancos violentos, Jorge esgarçava o pescoço e esticava toda a coluna para acompanhar cada lance. Os olhos transbordavam. Mantinha-se nessa posição de alarme durante todo o desenrolar das jogadas, fazendo o silêncio fruir limpo dentro de um estádio lotado. Como uma lacuna.

Tudo andou assim, até o juiz anunciar penalidade máxima. O zagueiro do time adversário investira firme contra as pernas do artilheiro. Jorge se fundiu ao molho geral da torcida, feliz, feliz por inteiro. E rolou na euforia coletiva com ingenuidade deliciosa, leve. Até uma explosão aguda nos olhos. Um relâmpago, uma chama inesperada. Um rosto íntimo no gramado. Apertava os olhos e movia a cabeça, em busca de um ângulo que permitisse, mais uma vez, a visão disforme. Mas nada. Vira o que jamais teria visto irrefletido, com a face do terror. Disse a si mesmo a frase que nunca teria dito, de tão absurdo sentido: “Estou lá”. Quando o silêncio voltou, Jorge já estava calado.

Gol. Jorge voltou no trem, sacudindo em silêncio. O breve Clóvis ao lado, também em silêncio. Naquela tarde, agora, tudo flutuava sobre trilhos de vapor. Tudo imerso no rosto escuro e amargo que ele regurgitava. Não entendia. Como se fosse possível. Como se tudo não fosse. Como uma lacuna. Como um café. E bebeu o domingo dentro de um copo, sobre a mesa de um bar, numa rua do Engenho de Dentro.


[Conto de 2006]