sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Dia de domingo

Interrompeu o passeio para um gole. O café esgotava toda a paisagem do bar. O jaleco, a caixa registradora e os copos não-enxaguados postos com grosseria sobre o balcão iam desaparecendo. Um gosto velho destilava entre os dentes. Um sabor rude que se apurava a cada grito dos ônibus no asfalto. De alguma forma, o funcionamento dos seus órgãos já estava condicionado a esse som vital. Triste processo, que se enroscava no clima morno do domingo. Daí a sentir a saudade do que não vivera. Conflito que Jorge, homem adulto de olhar bovino, jamais notaria.

Revezava o apoio das pernas cruzadas sob a cadeira — um pé suportando o outro. Já no terceiro movimento com o copo, juntou-se ao vapor quente do café e entrou na reminiscência daquele dia.
Por ter chegado pouco antes de os portões abrirem, Jorge circulou pelo entorno do estádio. Bandeiras e camisas, isopores embalados em fita parda, as árvores que margeiam o rio Maracanã, tudo dentro do cheiro forte de urina. Voltou aos portões, e lá encontrou Clóvis. Homem baixo, careca e levemente retardado (característica que, numa conversa, o fazia sempre concordar com o interlocutor). Mantinham uma amizade forjada na firmeza da simplicidade suburbana.

Após um abraço sincero e automático, puseram os pés em passo. Já sentado, Jorge, ao alcançar a primeira lata de cerveja, franziu o cenho:

— Ô Clóvis, onde é que tá o Marquinho, hein? Vou passar um rádio pra ele — relinchou, deixando surgir dentes branquíssimos, que se abriam como pássaros. Marquinho era outro amigo que havia marcado com eles. Juntos, os três formavam um pequeno núcleo, com absolutamente tudo girando em torno da cerveja, motor daquilo tudo:

— Fala, filho... Onde é que tu tá? — em seguida, uma troca de termos retóricos, num esforço mútuo para lubrificar a conversa, que, na verdade, não existia. Marcos era o mais jovem, o mais volúvel, e não iria ao jogo.

Clóvis sorria maquinalmente, ingênuo de óculos profundos. Jorge acendeu um cigarro. E completando um roteiro, olhou para o horizonte. Pôs um dos antebraços por debaixo do suvaco, coçou o bigode amarelado de alcatrão com um dos dedos da mão que segurava o cigarro e soltou:

— É engraçado, né, Clóvis, esse negócio de... — o discurso é interrompido pela voz do locutor do estádio, anunciando a entrada de um time. Naturalmente, Jorge obedeceu: calou e sumiu diante da expectativa que se criava.

Até o jogo começar, os minutos úmidos da espera. Como uma lacuna. E logo chegou um vento frio no ventre do pequeno Jorge, soprado pelo som do apito do juiz. Nesses dias de jogo, ele entrava num frenesi constante, aniquilando qualquer esboço de gravidade, embriagado de alegria infantil — processo que, de modo algum, percebia.

Mas o caos, visto de cima, tinha enredo, normas. Em solavancos violentos, Jorge esgarçava o pescoço e esticava toda a coluna para acompanhar cada lance. Os olhos transbordavam. Mantinha-se nessa posição de alarme durante todo o desenrolar das jogadas, fazendo o silêncio fruir limpo dentro de um estádio lotado. Como uma lacuna.

Tudo andou assim, até o juiz anunciar penalidade máxima. O zagueiro do time adversário investira firme contra as pernas do artilheiro. Jorge se fundiu ao molho geral da torcida, feliz, feliz por inteiro. E rolou na euforia coletiva com ingenuidade deliciosa, leve. Até uma explosão aguda nos olhos. Um relâmpago, uma chama inesperada. Um rosto íntimo no gramado. Apertava os olhos e movia a cabeça, em busca de um ângulo que permitisse, mais uma vez, a visão disforme. Mas nada. Vira o que jamais teria visto irrefletido, com a face do terror. Disse a si mesmo a frase que nunca teria dito, de tão absurdo sentido: “Estou lá”. Quando o silêncio voltou, Jorge já estava calado.

Gol. Jorge voltou no trem, sacudindo em silêncio. O breve Clóvis ao lado, também em silêncio. Naquela tarde, agora, tudo flutuava sobre trilhos de vapor. Tudo imerso no rosto escuro e amargo que ele regurgitava. Não entendia. Como se fosse possível. Como se tudo não fosse. Como uma lacuna. Como um café. E bebeu o domingo dentro de um copo, sobre a mesa de um bar, numa rua do Engenho de Dentro.


[Conto de 2006]